terça-feira, 19 de julho de 2011

A sombra da solidão

Está nas livrarias, em uma linda edição de capa azul com formato de envelope, o livro Carta a D., do filósofo francês André Gorz. O primeiro parágrafo diz mais ou menos assim: você está com oitenta e tantos anos, pesa 45 quilos, tem 4 centímetros a menos do que tinha quando eu a conheci e eu ainda amo você desesperadamente.

Li essas linhas de pé na livraria e fiquei instantaneamente comovido. Quem não ficaria?

Gorz celebra neste livro o amor de 66 anos por sua mulher, Dorine. O romance dos dois aconteceu durante um período (e em meio a um grupo de pessoas) que não ficou marcado pelo conservadorismo afetivo e sexual.

Um exemplo: o filósofo Jean Paul Sartre, de quem Gorz era discípulo, manteve uma relação de toda a vida com a escritora Simone de Beauvoir, ao mesmo tempo em que ambos cultivavam múltiplos amantes. Eram leais um ao outro, mas profundamente libertinos.

Gorz, do contrário, suicidou-se junto com a mulher em setembro de 2007, deixando na porta da casa deles um bilhete para que se chamasse a polícia.

Foram somente os dois, até o fim , como na crônica de Vinícius de Moraes: "gostaria que morrêssemos juntos e fôssemos enterrados de mãos dadas, e nossos olhos indecomponíveis ficassem para sempre abertos, mirando muito além das estrelas".

Logo Vinícius, que parecia incapaz de amar uma mesma mulher por mais do que alguns meses.

Quando olho em volta, quando ouço meus amigos e amigas se queixando, tenho impressão de que somos muito mais parecidos com Vinícius do que com Gorz.

Nossos amores não duram, nossos romances se sucedem, as rupturas nos atordoam e machucam, mas se repetem, inexoravelmente.

Habitamos um mundo de ansiedade e busca permanentes, interrompidas de quando em vez por pequenas tréguas reparadoras, mas breves.

Depois de rirmos do casamento vitalício de nossos pais e avós, parecemos condenados a sofrer do mal inverso: a sombra da solidão constante, a intranquilidade como regra, a incapacidade de manter relações duradouras.

Por quê?

Em primeiro lugar, porque esperamos demais da vida, sobretudo das relações afetivas.

Queremos tudo. O prazer, o amor, a troca inteligente e os planos de longo prazo. Queremos a segurança e a sensação de aventura no mesmo pacote. O melhor sexo e mais resoluta fidelidade. Suspeito que desaprendemos a arte de viver com menos do que se deseja. Esquecemos como é esperar e suportar. É tudo agora. É tudo ou nada. E tem sido nada para muitos.

Claro, somos enormemente egoístas se comparados às gerações anteriores.

Quando se trata de amor, nossa satisfação vem antes de qualquer outra coisa: a família, os filhos, os sentimentos daqueles que se envolvem conosco. O direito à felicidade se impõe sobre tudo mais. Ele é talvez o principal objetivo da maior parte da humanidade: ser feliz. Mas quem sabe o que isso significa nos dias que correm?

Não sei de vocês, mas eu estou cercado de pessoas que se queixam da vida afetiva. Há uma amiga que não consegue se livrar de um cara meio traste e está adoecendo de inquietação. Eu disse pra ela outro dia: amor não é crack, não pode ser um vício tão destrutivo. Mas às vezes é.

Outra amiga casou pela segunda vez com um sujeito que parecia perfeito, mas que ela não amava. Deu errado. Ela sofre pra burro, suponho que o rapaz também. Me disse a amiga outro dia: os homens legais estão casados ou namorando. Por que todos têm essa sensação se tantos estão sozinhos?

Ontem falei com uma ex-namorada que ama um homem casado. Há dois anos se relaciona com ele, entre crises terríveis de raiva e vergonha de si mesmo. Ontem ela me disse que acabou. A ver.

Há o amigo que tenta há semanas namorar uma moça que não quer namorar – e sofre. Eu digo a ele que relaxe, aproveite assim como está, descompromissado, mas ele – como qualquer bípede na Terra – precisa se sentir amado, não gentilmente esnobado. Pode acabar terminando o que nunca começou.

O que fazer com essa multidão sem par?

Eu não sei. Minha analista não sabe. Os meus amigos não fazem ideia. Não dá pra fechar a caixa de pandora das nossas aspirações, mas não podemos ser sufocadas por elas.

Eu sugiro tentar e tentar e tentar ainda outra vez. Sobretudo, tentar fazer diferente: com outro tipo de pessoa, com outro tipo de abordagem, com mais paciência, com menos pressa, com mais atenção no outro (que é sempre um exercício delicioso).

Não é possível que neste mundo imenso não haja alguém que complemente (ainda que temporariamente) cada um de nós, bípedes afetuosos e (potencialmente) felizes.

(IVAN MARTINS editor-executivo de ÉPOCA)